quinta-feira, 27 de julho de 2017

Sobre a prepotência



É bastante conhecida a passagem da Odisseia de Homero em que Ulisses encontra as sereias e, desejando ouvi-las sem enlouquecer, faz-se amarrar ao mastro do navio em que viaja, não sem antes alertar seus remadores para que tapem os ouvidos com cera e possam, deste modo, continuar a travessia normalmente. Esta história encanta muita gente há muito tempo, mas foi apenas Kafka quem percebeu a ingenuidade de Ulisses, a de acreditar que o poder do canto das sereias poderia ser contido por cera e cordas.

Ao perceber isso, Kafka diz que há algo mais terrível do que o canto das sereias. Segundo ele, se alguém pudesse escapar ao canto das divindades telúricas, todavia não poderia escapar ao seu silêncio…

No conto de Kafka, Ulisses acreditou que as escutava. Mas as sereias não cantaram. E não cantaram porque Ulisses lhes pareceu um sujeito meio bobo com toda aquela parafernalha usada para proteger-se do seu canto.

Para entender Kafka, poderíamos nos perguntar mais ou menos assim: como pode alguém que vai ver e ouvir as sereias – justamente as SEREIAS – estar preocupado com outra coisa que não a experiência da coisa enquanto tal, uma coisa absurda como ouvir SEREIAS? Não se trata de música que se ouve no rádio, nem de nada que se possa baixar na internet pra ouvir com fones. Trata-se, afinal, do mítico canto das sereias. Convenhamos que não é pouca coisa, pensemos como Kafka. A verdadeira experiência de arrebatamento com a qual um ser humano sonha e da qual está impedido por limitações humanas, ali, finalmente realizável. E Ulisses? Ora, Ulisses quase chegou lá, mas preferiu menos, não porque quisesse permanecer humano (afinal, esse problema não era o seu), mas porque já estava com a consciência instrumentalizada.

Apesar da ingenuidade de Ulisses, as sereias gostariam de tê-lo capturado. Se não os ouvidos, pelo menos os olhos do herói astucioso. Mas os olhos de Ulisses não se dirigiam a elas. Não se dirigiam às forças temíveis da natureza que desejariam justamente aniquilar olhos em geral. Os olhos de quem se dispusesse a vê-las. Os olhos da cultura, digamos assim. Ora, o poder dos seres míticos seria o de subjugar os seres racionais, o poder dos seres divinos deveria suplantar o poder humano. Seria lógico que Ulisses se submetesse a elas. Mas os olhos de Ulisses eram olhos distraídos, estavam atentos demais às estratégias para vencer as sereias e, mesmo assim, eram olhos (e ouvidos, não esqueçamos) que queriam “curtir”. Aqueles olhos e aqueles ouvidos precisavam ser capturados pelo canto e pela imagem das sereias, do contrário seria o fim das sereias. Mas Ulisses não podia dar o braço a torcer e dizer que encontrou com o seu silêncio.

Por sorte, tudo acabou bem. Ulisses fingiu que ouvia e foi embora. E alguma coisa ele viu. As bocas perplexas. As sereias, sem entender como era possível que alguém não se desse conta do que acontecia naquele momento, continuaram existindo apesar de Ulisses quase as ter destruído com sua boçalidade.

Kafka termina o conto sem dar uma de Ulisses, ou seja, combatendo a tentação de prepotência que caracteriza o protagonista homérico, afirmando que talvez Ulisses tenha percebido tudo isso e tenha escapado das sereias, do seu poder terrível e destrutivo, o poder da sedução (mas não só, o poder do misterioso que é viver), justamente controlando esse jogo de aparências, fingindo que tinha entendido tudo. Ulisses era um espertinho, as sereias sabiam que não, mas Kafka, que era um homem decente, apenas nos põe a desconfiar e deixa tudo no tom do “quem vai saber?”.

Há um momento do texto em que se pode reconhecer o poder da prepotência de Ulisses que quase destruiu as sereias: “Contra o sentimento de tê-las vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante – que tudo arrasta consigo – não há na terra o que resista.”

Essa força, a da crença de que se venceu as sereias, não tem comparação. Ela destrói tudo. Mas que poder de destruição é esse que seria capaz de eliminar logo as  sereias se elas estivesses desprotegidas? Lembremos que as sereias estavam protegidas por serem inconscientes e permanecerem na eternidade, apenas que ficaram meio perplexas com o jogo humano…

A condição humana sob o signo do capitalismo tecnológico nos tornou cada vez mais parecidos com Ulisses, o boçal. Ulisses que Adorno e Horkheimer chamaram de “protótipo do indivíduo burguês” não é mais do que o turista que usa câmera de fotografar e filmar quando teria a chance de entregar-se à viagem; é o pai que filma o parto enquanto a criança se ocupa em nascer e a mãe torna-se um objeto decorativo no filme bizarro; é, por fim, o dono do celular último-tipo que deixa de conversar com os filhos, o amigo, a mulher, porque há coisa muito mais interessante para ver no mundo virtual além da mesa do restaurante…

Lembro que dizíamos: aponta-se a estrela e ele olha para o dedo…

Eis Ulisses, olhando para o dedo com o qual tecla o celular enquanto as sereias resolvem dormir…

O conto de Kafka nos aponta para a prepotência da inteligência de Ulisses que, na época só tinha em mãos, corda e cera. Hoje, na era tecnológica, com os aparelhos impressionantes que temos, somos todos Ulisses em estado avançado de putrefação espiritual. Perdemos de ouvir o canto das sereias porque nossos olhos distraídos são de vidro, plasma, LCD, LED, ou outro material que empolga os tontos no contexto da ideologia da alta resolução. Evolução direta da cera e da cordinha que amarrava Ulisses ao mastro fazendo ele se sentir inteligente.

Viver, mais uma vez, deve ser algo parecido com “resistir” a essas bugigangas. Resistir certamente nos fará ouvir o silêncio das sereias.

Márcia Tiburi
Publicado originalmente na Revista Cult

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