sábado, 10 de março de 2018

Mário de Andrade e o fim da geografia

Em seu prefácio ao Macunaíma (1928), e depois nos manuscritos do relato de viagem O Turista Aprendiz (concluído em 1943, publicado em 1976), Mário de Andrade usou algumas vezes o termo “desgeograficar” para descrever o seu  método criativo pouco ortodoxo.

Inspirando-se nas pesquisas de Koch-Grunberg e outros, ele se muniu de uma extensa documentação sobre mitos amazônicos (bem como de outras regiões), e passou tudo no liquidificador.

No chamado “2º. Prefácio” de Macunaíma, ele diz:

“[O livro] Possui aceitação sem timidez nem vanglória da entidade nacional e a concebe tão permanente e unida que o país aparece desgeograficado no clima na flora na fauna no homem na lenda na tradição histórica até quanto isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo. Falar em ‘pagos’ e ‘querências’ em relação às terras do Uraricoera é bom”

Como se vê, Mário queria pegar esse material etnográfico bruto e puxá-lo todo de uma vez para um nível mais alto, mais abstrato, mais apenas-literário. “Abstrato” no sentido de não estar mais com raízes fincadas numa realidade regional obrigatória – daí sua sugestão se usar o vocabulário gaúcho (“pagos”, “querências”) para falar do mundo amazônico.

Por um lado, ele queria (imagino) se permitir uma certa liberdade criativa no aspecto literário, sem que lhe aparecesse à porta um antropólogo de plantão, de caderneta em punho, tocando na campainha e avisando que a palavra tal era desconhecida dos tupiniquins e usada apenas pelos tupinambás.

Mário tinha espírito científico suficiente para saber com clareza em que instâncias este espírito deve se impor, e em que instâncias ele é um desnecessário freio-de-mão-puxado, travando a imaginação narrativa, fabulatória. Deixar de contar uma história boa porque algum ponto necessário a ela contradiz um dado da ciência é um erro gratuito. Se tem alguma Musa ou Deusa que conhece o seu lugar, é a Ciência. Ela sobrevive. (Isto vale para a ficção científica também. É a ficção que dá a última palavra.)

Mário deixa isso bem claro numa nota de 1926 ao primeiro prefácio (estou citando a reedição anotada e comentada de O Turista Aprendiz, Brasília, Iphan, 2015):

“(Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea – um conceito étnico nacional e geográfico.)”

Desgeograficar na prática corresponde a uma tentativa (acho eu) de desregionalizar na literatura, porque já naquela época era forte o viés “regionalista” em nossa ficção, preparando a explosão dos grandes romances da década seguinte: Rachel de Queiroz, Graciliano, José Lins, etc.

Era muito enxerimento de Mário querer “conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea”, mas era exatamente isso que se fazia necessário, por equilíbrio – em paralelo ao trabalho dos escritores da outra tendência, os regionalistas de precisão etnográfica, precisos no uso de cada termo ou na descrição de cada plantinha, peça de roupa, geringonça de trabalho.

O “homogeneizar” de Mário não era transformar tudo em cópia idêntica disso ou daquilo, mas remover as barreiras da alfândega cultural segundo a qual só os nordestinos deviam falar do Nordeste, só os mineiros de Minas, os baianos da Bahia. Tornar toda a cultura brasileira um banco-de-dados com livre acesso aos brasileiros.

Por isso mesmo que um dos maiores poemas amazônicos, Cobra Norato (1931), foi escrito pelo gaúcho Raul Bopp.

É curioso comparar essa idéia-projeto de Mário com a expressão do cyberpunk William Gibson ao dizer que certas corporações de hoje não são mais propriamente “multinacionais” e sim “pós-geográficas”. É um movimento parecido de anular a geografia, mas no sentido inverso, de cima para baixo, do macro para o micro, do universo das grandes invasões uniformizadoras, para quem as fronteiras nacionais, os idiomas, as culturas, são problemas de discrepância que precisam ser resolvidos como alguma espécie de Raio Homogeneizador.

Mário queria o contrário disso. Queria exaltar o único, o diferente, o individual, todas as faunas e floras, todas as lendas e parlendas, para que se tornassem moedas com valor de troca para além da sua tribo de origem.

Pensava ele (penso eu) na necessidade de despregar essas obras tipo Macunaíma da obrigação servil de funcionar como mera ilustração da realidade e ganhar autonomia literária. Pode parecer que não, mas sempre foi e ainda é grande a vigilância etnográfica em nossa literatura, uma ansiedade ou angústia que é uma doença infantil do Realismo literário.

Realismo é a ilusão de que a literatura é capaz de reproduzir a Realidade, e é consequência da ilusão renascentista-vitoriana de que podemos um dia saber o que é a Realidade.

Por outro lado, Mário não estava querendo, a julgar por suas explicações, que a literatura virasse um samba do crioulo doido, virasse uma cantoria de Zé Limeira. Ele ressalva: “até quanto isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo”.

Isso sem dúvida é uma opção estética das mais problemáticas, porque não serão poucos os casos em que um leitor desavisado como eu irá basear uma argumentação em algo que leu num romance e supôs com ingenuidade que era um dado factual indiscutível. “—Mas é claro que os amazonenses chamam seus territórios afetivos de querências!... Está lá no livro de Mário!...”

Paciência. Essa atitude dele me parece aquele impulso eterno da literatura para se despregar do meramente factual e ir ao cerne fabulatório das histórias a serem contadas, contadas à revelia dos fatos e lugares onde tiveram origem.

Num poema de A Volta ao Dia em 80 Mundos, Cortázar diz num poema dedicado a Borges que ele falava em Babilônia e pouca gente entendeu que ele se referia ao Rio da Prata.

Bertolt Brecht desgeograficava a Alemanha que queria criticar, transformando-a em Manhattan, China, Londres, Cáucaso. Era uma maneira de dizer: “Esqueçam a geografia. Esta estória é sobre a História”.
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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